sábado, 30 de maio de 2009

As Conferências de Casino

III
A geração de 70
Antero, porém, que desembarcara em Lisboa, como um Apóstolo do Socialismo, a trazer a Palavra aos gentílicos, em breve nos converteu a uma vida mais alta e fecunda. Nós fôramos até aí, no Cenáculo, uns quatro ou cinco demónios, cheios de incoerência e de turbulência, fazendo um tal alarido lírico-filosófico que, por vezes, de noite, os dois cónegos estremunhados rompiam a berrar, o burro por baixo zurrava, desoladoramente, e no céu, sobre os telhados fronteiros, a lua parava, enfiada. Mas toda a nossa alma se ia nesse alarido, e o vento vão da boémia a levava, para onde leva as almas descuidadas e as folhas de louro secas…Sob a influência de Antero, logo dois de nós, que andávamos a compor uma ópera-bufa, contendo um novo sistema do Universo, abandonámos essa obra de escandaloso delírio – e começámos à noite a estudar Proudhon, nos três tomos da «Justiça e a Revolução na Igreja», quietos à banca com os pés em capachos como bons estudantes. Via-Láctea começou a varrer»
Foi Antero que imprimiu alguma ordem às reuniões indisciplinadas daquela mocidade turbulenta. Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, atraídos pela importância dos problemas que ali se debatiam, não tardaram em intervir. Guerra Junqueiro como poeta e irreverente revolucionário. Outro vulto que se tornou assíduo do Cenáculo foi José Fontana que viria a desempenhar um papel importante no movimento democrático socialista. Batalha Reis a ele se refere do seguinte modo:
«As conversas tomavam então o carácter que ele infalivelmente lhes imprimia: a Revolução estala para a semana. E contava pormenores, mostrava cartas recebidas, que repentinamente lhe apareciam desdobradas nas mãos, e, num momento, também desapareciam, não se viam bem como, nas algibeiras interiores (…). «A Revolução social – seguir-se-ia, ou far-se-ia de per si só, de um modo infalível, absolutamente seguro, sem possibilidade de um revés».
Foi numa atmosfera buliçosa do Cenáculo que nasceu a ideia das conferências democráticas, já sob a égide de Antero de Quental, que todos consideravam, pela sua cultura e pela pureza das suas intenções, o seu verdadeiro “maestro”. Eça, na sua crónica, intitulada “Santo Antero,” diz-nos: «E do Cenáculo, de onde, antes da vinda de Antero (que foi como a vinda do Rei Artur à confusa terra de Gales), nada poderia ter nascido além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de Filosofia fácil, nasceram, “mirabile dictu”, as Conferências do Casino, aurora de um mundo novo, mundo puro e novo, que depois, oh dor! creio que envelheceu e apodreceu…»
Eça descrevia, a propósito das Conferências, num dos primeiros números das “Farpas”: Antes de haver conferências no Casino havia ali “cançonetas”.Mulheres decotadas até ao estômago, com os braços nus, a “pantorrilha” ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um reportório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a dignidade, a honra, Deus! Eram também conferências do deboche. E havia muitos alunos!»
Fotos:1- Batalha Reis,; 2 - José Fontana e 3 -Eça de Queiroz.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

As Conferências de Casino

II
A geração de 70 (continuação...)
A ideia das Conferências de Casino surgira no ano de 1871 no Cenáculo, que “era uma reunião de rapazes”: uma espécie de boémia literária em que se discutia filosofia, letras, política, religião, tudo acompanhado de um berreiro ensurdecedor”.
Em princípio de 1867 ou 1968, em casa do sr. Jaime Batalha Reis, na esquina da Travessa do Guarda-Mor para a Ruas dos Calafates, actual Rua do Diário de Notícias, faziam parte deste primitivo grupo Eça de Queiroz, Salomão Saragga, Batalha Reis, Santos Valente, Mariano Machado de Faria e Maia e José Eduardo Lobo de Moura. Vinham também juntar-se a este grupo e participar nas ruidosas discussões, Augusto Fuschini, José Tedeschi, Fredeirco Filemon da Silva Avelino e o maestro Augusto Machado. Em Novembro de 1968 apresentou-se no Cenáculo Antero de Quental que regressara da Ilha de São Miguel. A influência de Antero era tal que passou a viver, pouco tempo depois, em casa de Jaime Batalha Reis. Conforme nos conta Eça de Queiroz - que já conhecia Antero de Coimbra :
« Enfim, Antero volta a Lisboa, encontra o Cenáculo. Encontra o nosso querido e absurdo Cenáculo instalado na Travessa do Guarda-Mor, rente a um quarto onde habitavam dois cónegos, e sobre uma loja em que se agasalhavam, como no curral de Belém, uma vaca e um burrinho. Entre essas testemunhas do Evangelho e esses dignitários de Igreja, rugia e flamejava a nossa escandalosa fornalha de Revolução, de Metafísica, de Satanismo, de Anarquia, de boémia feroz. Jaime Batalha Reis era o dono do aposento temeroso, e a Via-Láctea, galego ilustre, o seu servo. Via Láctea dormia pendurado, como um paio, da chaminé da cozinha. As suas ocupações não consistiam em escovar ou varrer. A Via- Láctea fora confiada a missão transcendente de espreitar a passagem da ideia ao longo do rio do Espírito, para nos avisar, e nós corrermos e a prendermos na rede rutilante do Verbo. Durante dois anos, cada dia, a hora de sol e a horas de treva, empurrámos nós com fragor a porta da cozinha, e berrámos com ânsia: « Via-Láctea! Via-Láctea! Viste enfim a Ideia Pura boiando na corrente Espiritual?...» E durante dois anos, Via-Láctea, de dentro da chaminé ou de sobre a tampa de um caixote, imutavelmente rosnou com uma dignidade triste: « Num bi nada». Aí Antero apareceu numa fria manhã – e foi aclamado.
Naquela viela de Lisboa ressuscitou então, por um momento, «a encantada e quase fantástica Coimbra».

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A geração de 70

I
“A geração de 70”, vulgarmente designada, é o nome porque é conhecido a plêiade de jovens literatos que agitaram com ideias novas, combatendo as velhas, durante a década que decorreu nos anos de 1870 e 1880.Eram jovens de sangue novo e irrequieto que pretendiam demonstrar que a arte e a literatura não eram actividades isoladas e de mera inspiração pessoal como o pretendiam os patriarcas do romantismo. Rejeitavam pois a teoria da arte pela arte, então em voga.
Era urgente proceder a uma revisão crítica, penetrante e impiedosa de todos os valores em que a sociedade da época assentava. “O sistema de governo, os vícios da administração pública, os anacronismos da educação, a principiar pela universitária (…) e a acabar no ensino primário, tão escasso e atrasado neste País constituído por uma massa inerte, em que 90 por cento de analfabetos chafurdava na lama da mais crassa ignorância e da mais lamentável superstição, inconscientes dos seus verdadeiros interesses vitais. Perante um diagnóstico sombrio da sociedade portuguesa, estes jovens, recém-chegados de Coimbra e munidos do seu diploma de bacharel, entendiam que só uma revolução – cultural - podia reerguer a Nação do abismo para onde caminhava.
A importância da forma de intervenção destes jovens – cultural, cívica, social e política – junto da opinião pública e o seu impacto nos destinos da Nação conduziria, num futuro próximo, à queda da monarquia e à proclamação da República. São as famosas Conferências do Casino e o grupo dos cinco: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro.
Continua…

domingo, 10 de maio de 2009

A intimidade de um beijo

Não sei se vou escolher as palavras certas, os substantivos, os verbos e a adjectivação adequada para exprimir o significado do beijo. Não do beijo como troca de afectos entre familiares e cumprimento de amigos - muito importante - mas do beijo entre um homem e uma mulher. Do beijo que envolve uma paixão, um sentimento de amor e um abraço apertado de corpo e alma; de um beijo desejoso da cumplicidade do olhar e apenas o silêncio das palavras. De um beijo que se dá à chegada e à partida, no início e no fim, entre amantes que se amam. De todos os beijos e também do primeiro beijo de amor. Das lembranças de uma melodia e de um poema cantado, de noite ou à luz do dia. Podia ser o primeiro beijo cantado por Rui Veloso:
Recebi o teu bilhete
para ir ter ao jardim
a tua caixa de segredos
queres abri-la para mim
e tu não vais fraquejar
ninguém vai saber de nada
juro não me vou gabar
a minha boca é sagrada

Ou o lindíssimo poema « estrela da tarde», de Ary dos Santos, cantado por Carlos do Carmo:

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

E para terminar, só mesmo com Vinícius de Moraes:
Como dizia o poeta
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu
Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não
Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer
Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

sábado, 9 de maio de 2009

A biografia de um escritor


Franz Kafka
Gosto sempre de ler a biografia de um escritor, sobretudo quando o leio pela primeira vez. A sua naturalidade, País e local de nascimento, formação académica e origem social. Seguidamente, o tema ou Obra, às vezes prefaciada por alguém, de forma excessivamente erudita, interminável e chata, parecendo o prefaciador estar mais preocupado consigo do que sobre o autor do livro. Há já um largos anos que li «O Processo» de Franz Kafka, escritor checo, que nasceu em Praga a 3 de Julho de 1883. Foi contemporâneo dos escritores austríacos como Rilke e Thomas Mann. Morreu cedo, aos 41 anos. A mãe provinha de uma família burguesa, instruída e culta. O tio materno, Siegfried Lowy, era médico e o avô da mãe era um homem de formação muito judaica; o pai, cujas relações não eram famosas, um proletário que nunca se esqueceu da sua difícil vida de juventude e a lembrava os filhos disso, estabeleceu-se no comércio (negociante de quinquilharias, artigos da moda, artigos de fantasias…) e foi perito ajuramentado junto dos tribunais.
Kafka, praticamente nunca saiu do sítio onde nasceu – parte antiga da cidade de Praga. Aí estudou, fez o Liceu (de dupla monarquia e o ensino da língua alemã), ao antigo estilo clássico, instalado no Palácio Kinsky, a poucos metros de distância da casa onde a família morava. Talvez que o isolamento de Kafka, e o misterioso ensimesmamento, tenham sido causados pela educação pragmática e abstracta.
Terminado o ensino secundário, opta pela Filosofia, uma escolha a que o seu pai ( Herrmann Kafka) se terá oposto. Pouco tempo depois de ter começado a estudar química passou para a Faculdade de Direito. Com o curso de Direito, fica “saldada a dívida para com os pais”… Por intermédio de um colega de escola, Pribram (cujo pai presidia ao Instituto de Seguros para Acidentes de Trabalho, de que mais tarde Kafka seria funcionário) foi introduzido na alta sociedade de magnatas da industria, professores universitários e de alta nobreza.
O Processo é um romance que conta a história de Josef Kafka, personagem que, no seu 30º aniversário é despertado, não para tomar o café da manhã mas com a voz de prisão. Inicia-se então todo o processo, um pesadelo burocrático, com interrogatórios, salas de espancamentos, cartórios e audiências, sem que vítima saiba alguma vez de que crime é acusado ou a defesa (advogado), o tenha verdadeiramente defendido.
Sobre a bibliografia de Kafka, há várias Obras traduzidas em Português ainda não lidas:
A Metamorfose, Na Colónia Penal, Carta ao Pai, O Castelo, A Grande Muralha da China, Diários 1910-1023, Investigação de Um Cão, Os aviões em Brescia…