O Livro do Meio
Já aqui no Itinerante foi referido o nome de Armando Silva Carvalho a propósito de A cultura e os filhos da terra. Agora, acabei de ler, com afincado prazer, o Livro do Meio da sua autoria e de Maria Velho da Costa.
Trata-se de um romance epistolar onde ambos autores retractam – com alguma ironia mútua - as suas origens e infância. O Armando, de famílias rurais - os Lavaduras - natural de Olho Marinho, concelho de Óbidos, e Maria Velho da Costa, pequeno – burguesa, filha de pai militar (oficial - comandante) e “mãe fina”. Ele proveniente do meio rural, ela do meio citadino. Têm em comum o nascimento no ano de 1938; ambos escritores reconhecidos e vasta obra publicada com prémios atribuídos. Politicamente, situam-se à esquerda: entre o PS ou esquerda caviar e o PC.
Fruto da convivida amizade e cumplicidades, decidiram ambos pôr a sua escrita em dia, que é como quem diz, a sua correspondência num livro. Fizeram de uma forma Grande, elegante e sem tabus, despidos de preconceitos. Pessoalmente, admirei bastante a coragem da exposição pública das suas vidas, família, amigos que o foram, ao estilo das Liaisons Dangereuses (Ligações Perigosas) de Choderlos de Laclos e de uma forma erudita apreciável. A crítica é favorável como se pode ler no extracto abaixo publicado no jornal Público, na ocasião:
« Ninguém estranhará que comece por reconhecer que a memorialística portuguesa é pobre. (…) Em Portugal, o busílis não está do lado de quem fez, está do lado das omissões. Se pensarmos naqueles que não arriscaram uma linha, e são quase todos, temos a medida do que somos.
…«Não admira que O Livro do Meio seja motivo de escândalo e atrabile. O país dos interditos convive mal com movimentos de câmara lenta. O rumor surdo da perplexidade traduz as reticências de regra. Afinal, o que é que leva dois autores consagrados, Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa, nascidos ambos em 1938, à desabusada escavação da infância? Por que é que, sem perder Laclos de vista, foram ambos induzidos à narrativa da intriga? Valmont e a Merteuil trocaram o castelo de Madame de Rosemond pelo British Quintal? (O British Quintal é o jardim da casa de Maria Velho da Costa.) Pergunta ela: «E que fizemos à Merteuil e ao Visconde? / Devem ter-se tolhido com a tua abominação da aristocracia, a querela de classes, o Terror.» A questão não é inocente. E o protocolo não engana: nos interstícios do passado insinua-se a prova do quotidiano. Leitura do mundo: obras, autores, prémios, família, castas, ódios, equívocos, querela, política, dinheiro.
Ele vem da pequena burguesia rural, do tempo em que todos se roçavam para chegar a Rousseau, mas, ainda rapaz, tinha ou julgou ter «outras Luzes guias, outros holofotes virados para as bandas do colectivo.» Valmont também conquistou o seu destino, e há-de ter lido O Contrato Social. Ela vem da burguesia instalada no Ancien Régime, viu mundo, o lusco-fusco do British Quintal ajuda-a a enfrentar o passado: «Os afectos são flutuantes. É o que os torna perigosos. Mesmo no seio da família, ou pior ainda. Quem diria que, depois de amar tão apaixonadamente os meus, poderia ir até à aversão? Que mutila. O ódio mutila.» Pai militar, «bisonho e frugal», mãe amante do luxo: «Perfumes, jóias, sedas, peles, comida requintada. E de dançar e de sair.» Ele a brincar aos padres em Olho Marinho: «O padre foi, aliás, na panóplia de seres que andavam à volta dos meus anos tenríssimos, o meu homem de saias.» Lenta descoberta da sexualidade num tempo em que «o sexo não existia em lado nenhum do corpo que a gente desse por isso.» Ela no Bairro Azul. Ele numa «província abaixo da meia-tigela [...] e não me peca a alma ao dizer que tinha costeleta de porco uma vez por semana após a missa. Outros comeriam feijões, pão duro, e quando.» Nítidas, as origens. A mnemónica deixa cicatrizes. O rapaz veio para a cidade, estudar e fazer pela vida. A rapariga não esqueceu o crivo apertado do Palácio das Madres, feudo das “Grandes”, um dia libertou-se e percebeu: «É toda uma cópia de contrastes, esta vida.» Muita água passou sob as pontes. Estão sentados no British Quintal, fazem parte do Meio, não há como fugir ao Meio, são consequência do Meio. Ela não poupa no desdém: «Há pouca gente tão ignara e arrogante como esses oxfordinhos de segunda. Cheios de mofo daqueles departamentos que fenecem, daqueles parques infantis para adultos, que consentem, salvo raras excepções entrincheiradas na excentricidade, dar diplomas a medíocres que seriam, na Sorbonne ou no MIT, mandados de volta à instrução primária.» Ele, sem sair da mesma área sociológica, tem o seu quinhão.… Quem conheça a obra dos co-autores encontra aqui um prolongamento das obsessões de ambos. O Armando Silva Carvalho de Portuguex (romance, 1977) ou de Elena e as Mãos dos Homens (contos, 2003) plasma-se na prosa sacudida desta “correspondência”. O mesmo se diga de Maria Velho da Costa, operando em flashback. Ouvindo-a discorrer sobre o rito de passagem que representou o Palácio das Madres, somos levados a recordar episódios do primeiro livro, Lugar Comum (contos, 1966), ou mesmo daquele Maina Mendes (romance, 1969) que definitivamente a consagrou. No seu desconstruir metódico, O Livro do Meio põe a nu a tensão dialógica que as obras respectivas estabelecem entre si. Uma mais-valia nada despicienda, convenhamos.»
Já aqui no Itinerante foi referido o nome de Armando Silva Carvalho a propósito de A cultura e os filhos da terra. Agora, acabei de ler, com afincado prazer, o Livro do Meio da sua autoria e de Maria Velho da Costa.
Trata-se de um romance epistolar onde ambos autores retractam – com alguma ironia mútua - as suas origens e infância. O Armando, de famílias rurais - os Lavaduras - natural de Olho Marinho, concelho de Óbidos, e Maria Velho da Costa, pequeno – burguesa, filha de pai militar (oficial - comandante) e “mãe fina”. Ele proveniente do meio rural, ela do meio citadino. Têm em comum o nascimento no ano de 1938; ambos escritores reconhecidos e vasta obra publicada com prémios atribuídos. Politicamente, situam-se à esquerda: entre o PS ou esquerda caviar e o PC.
Fruto da convivida amizade e cumplicidades, decidiram ambos pôr a sua escrita em dia, que é como quem diz, a sua correspondência num livro. Fizeram de uma forma Grande, elegante e sem tabus, despidos de preconceitos. Pessoalmente, admirei bastante a coragem da exposição pública das suas vidas, família, amigos que o foram, ao estilo das Liaisons Dangereuses (Ligações Perigosas) de Choderlos de Laclos e de uma forma erudita apreciável. A crítica é favorável como se pode ler no extracto abaixo publicado no jornal Público, na ocasião:
« Ninguém estranhará que comece por reconhecer que a memorialística portuguesa é pobre. (…) Em Portugal, o busílis não está do lado de quem fez, está do lado das omissões. Se pensarmos naqueles que não arriscaram uma linha, e são quase todos, temos a medida do que somos.
…«Não admira que O Livro do Meio seja motivo de escândalo e atrabile. O país dos interditos convive mal com movimentos de câmara lenta. O rumor surdo da perplexidade traduz as reticências de regra. Afinal, o que é que leva dois autores consagrados, Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa, nascidos ambos em 1938, à desabusada escavação da infância? Por que é que, sem perder Laclos de vista, foram ambos induzidos à narrativa da intriga? Valmont e a Merteuil trocaram o castelo de Madame de Rosemond pelo British Quintal? (O British Quintal é o jardim da casa de Maria Velho da Costa.) Pergunta ela: «E que fizemos à Merteuil e ao Visconde? / Devem ter-se tolhido com a tua abominação da aristocracia, a querela de classes, o Terror.» A questão não é inocente. E o protocolo não engana: nos interstícios do passado insinua-se a prova do quotidiano. Leitura do mundo: obras, autores, prémios, família, castas, ódios, equívocos, querela, política, dinheiro.
Ele vem da pequena burguesia rural, do tempo em que todos se roçavam para chegar a Rousseau, mas, ainda rapaz, tinha ou julgou ter «outras Luzes guias, outros holofotes virados para as bandas do colectivo.» Valmont também conquistou o seu destino, e há-de ter lido O Contrato Social. Ela vem da burguesia instalada no Ancien Régime, viu mundo, o lusco-fusco do British Quintal ajuda-a a enfrentar o passado: «Os afectos são flutuantes. É o que os torna perigosos. Mesmo no seio da família, ou pior ainda. Quem diria que, depois de amar tão apaixonadamente os meus, poderia ir até à aversão? Que mutila. O ódio mutila.» Pai militar, «bisonho e frugal», mãe amante do luxo: «Perfumes, jóias, sedas, peles, comida requintada. E de dançar e de sair.» Ele a brincar aos padres em Olho Marinho: «O padre foi, aliás, na panóplia de seres que andavam à volta dos meus anos tenríssimos, o meu homem de saias.» Lenta descoberta da sexualidade num tempo em que «o sexo não existia em lado nenhum do corpo que a gente desse por isso.» Ela no Bairro Azul. Ele numa «província abaixo da meia-tigela [...] e não me peca a alma ao dizer que tinha costeleta de porco uma vez por semana após a missa. Outros comeriam feijões, pão duro, e quando.» Nítidas, as origens. A mnemónica deixa cicatrizes. O rapaz veio para a cidade, estudar e fazer pela vida. A rapariga não esqueceu o crivo apertado do Palácio das Madres, feudo das “Grandes”, um dia libertou-se e percebeu: «É toda uma cópia de contrastes, esta vida.» Muita água passou sob as pontes. Estão sentados no British Quintal, fazem parte do Meio, não há como fugir ao Meio, são consequência do Meio. Ela não poupa no desdém: «Há pouca gente tão ignara e arrogante como esses oxfordinhos de segunda. Cheios de mofo daqueles departamentos que fenecem, daqueles parques infantis para adultos, que consentem, salvo raras excepções entrincheiradas na excentricidade, dar diplomas a medíocres que seriam, na Sorbonne ou no MIT, mandados de volta à instrução primária.» Ele, sem sair da mesma área sociológica, tem o seu quinhão.… Quem conheça a obra dos co-autores encontra aqui um prolongamento das obsessões de ambos. O Armando Silva Carvalho de Portuguex (romance, 1977) ou de Elena e as Mãos dos Homens (contos, 2003) plasma-se na prosa sacudida desta “correspondência”. O mesmo se diga de Maria Velho da Costa, operando em flashback. Ouvindo-a discorrer sobre o rito de passagem que representou o Palácio das Madres, somos levados a recordar episódios do primeiro livro, Lugar Comum (contos, 1966), ou mesmo daquele Maina Mendes (romance, 1969) que definitivamente a consagrou. No seu desconstruir metódico, O Livro do Meio põe a nu a tensão dialógica que as obras respectivas estabelecem entre si. Uma mais-valia nada despicienda, convenhamos.»
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